Lendas do Concelho de Portel

Lenda da Freguesia de Oriola

Em tempos que já lá vão e antes da aldeia de Oriola ser como é hoje, havia naquele lugar uma grande estalagem que se chamava o “BOM-ALBERGUE”. Esta estalagem que ficava junto à igreja de Nossa Senhora da Assunção era muito procurada por viajantes e peregrinos. Eram donos da estalagem, um casal de meia-idade que se chamavam “os Torres”: Maria das Torres e Manuel das Torres. Este casal era muito hospitaleiro e as pessoas gostavam muito de lá ficar abrigadas. Os seus quartos eram espaçosos e asseados e Maria era uma excelente cozinheira! Manuel tinha uma horta onde semeava e plantava as melhores verduras e frutas, com que Maria deliciava os seus hóspedes. A estalagem do “Bom-albergue” estava sempre cheia de clientes e o casal ganhava muito bom dinheiro com este negócio.

À noite, quando todos os hóspedes já estavam deitados, Manuel ia buscar o pote e despejava lá para dentro as moedas de ouro e prata com que os viajantes tinham pago os serviços (comidas e dormidas), nesse mesmo dia.

Depois falava para a mulher:

            -Maria olha para o nosso pote.... já está quase a fazer cagulo! - Dizia o Manuel todo entusiasmado,     enquanto enterrava as mãos nas muitas moedas que amealhara.

            -É verdade Manuel temos aqui um verdadeiro tesouro e vamos juntá-lo aos dois cofres cheios que já temos enterrados! - Disse Maria com um certo desalento.

            -Estamos a ficar ricos...- Constatou Manuel.

            -Pois é...e para quê? -Sussurrou a Maria.- A quem vamos deixar esta fortuna? Se não temos filho,  nem filha. - Referiu Maria desgostosa, para depois continuar:

            -Estamos a ficar velhos e não temos herdeiros. Sabes o que te digo Manuel..., deviamos fazer   uma promessa a Nossa Senhora da Assunção.

            -E qual promessa mulher? O que haveríamos de pedir?

            -Que se ela nos desse um filho, lhe entregaríamos todo o nosso tesouro! - Respondeu Maria.

            -Bem podes pedir isso Maria, velha como estás, não há Santa que te ajude! - Disse Manuel a rir enquanto arrastava pelo chão o pote cheio de moedas!

Passaram-se muitos dias e o negócio da estalagem do “BOM-ALBERGUE”, continuava a render muito dinheiro. Maria, essa, é que andava muito cansada e a sua fama de excelente cozinheira estava a ficar comprometida. Pesavam-lhe muito as pernas, doíam-lhe os peitos e enjoara o cheiro da comida. Por isso, passava o mínimo tempo de volta dos cozinhados, deixando uns crus outros queimados, uns insossos e outros salgados. O mal de Maria que o marido desconhecia e que a mulher nem suspeitava, foi confirmado um mês depois quando Maria fez uma visita à velha Eustácia, mulher muito sábia e experiente, curandeira do povo e que vivia num monte distante, perdido no meio da serra. Quando Maria  lhe contou os sintomas da sua doença, a velha Eustácia  pegou-lhe nas mãos e disse-lhe com muita segurança:

            -Maria...a tua doença não é grave, estás apenas há espera de um bebé!

Ao ouvir estas palavras Maria não sabia se havia de rir, se havia de chorar. Apetecia-lhe rir de felicidade porque desejava muito ter um filho, mas também se sentia receosa porque já não era nova e ter uma criança com a sua idade, poderia trazer graves complicações para o desenvolvimento e para a saúde do bebé. Sobre estes seus receios, no entanto, nada disse à velha Eustácia, apenas lhe agradeceu e voltou para a estalagem.

            -Manuel...trago uma novidade! - Disse Maria quando chegou a casa.

            -E que novidade é essa? - Perguntou o Manuel com curiosidade.

            -Nossa Senhora da Assunção do Bom-Albergue, atendeu ao meu pedido.- Confirmou Maria, muito contente.

            -Não me digas mulher...tu não me digas que... vamos ter um herdeiro?

            -Sim, Manuel, sim...estou grávida de alguns meses!

O casal ficou muito feliz, mas como não tinham mais família, guardaram segredo daquela gravidez. Também os hóspedes não suspeitavam do estado de graça de Maria, pois naquele tempo as saias usavam-se tão largas e em forma de balão que a barriga enorme de Maria ficava muito bem disfarçada.

Passou-se o tempo, até que numa noite, em que uma grande trovoada se abateu sobre o "Bom-albergue", Maria sentiu umas dores tão fortes, tão fortes...que teve de gritar pelo marido. Nessa mesma noite, depois de um longo trabalho de parto, onde apenas contou com a ajuda de Manuel, Maria deu finalmente à luz. E à luz de um candeeiro a petróleo e sob o reflexo dos relâmpagos da trovoada, Manuel e Maria poderam então apreciar o seu rebento: embrulhado num grande cobertor, aninhado num berço de madeira, um Ser disforme, de cara azul, ventas largas e olhos vermelhos chamejantes,  assim era o filho desejado de Manuel e de Maria!  O casal sentiu-se  muito triste e Maria  chorou lágrimas de mágoa e desencanto. Mas como boa mãe que era, pegou no seu  meninotauro e aconchegou-o no colo.  Depois Manuel preparou um grande biberão de leite e ajudou a mulher a alimentar a sua criançatauro. Muito junto e abraçados eles sentiram um grande amor por aquela criatura e prometeram que sempre o haveriam de proteger, pois era esse, o seu dever de pais.           

Ali mesmo, na sua casa , o baptizaram e deram-lhe o nome de Maurotauro.

Durante muitos meses Maria não apareceu aos hóspedes que continuavam a passar pelo "Bom-albergue" e era agora Manuel, quem  sozinho, tinha que tratar da lida de toda a hospedaria.

Durante esse tempo, a mãe cuidou do filho com todo o amor e carinho, amamentando-o com o leite das suas três melhores vacas e mantendo-o longe dos olhares dos curiosos. O rapaz-tauro estava cada vez mais forte e crescido: com um ano, parecia ter cinco e com dois anos, parecia ter dez. Foi nessa altura que começou a ser cada vez mais difícil aos pais, manterem-no fechado num quarto, até porque ele andava muito agitado e quando se zangava, produzia uns urros tão fortes, que o som fazia tremer as paredes do Bom-Albergue e aterrorizar os hóspedes!

Numa dessas noites em que Manuel e Maria já não conseguiam controlar o filho, falaram abertamente:

            -Que tristeza a nossa...um único filho, um único rebento e logo nasceu tão defeituoso. -Lamentou-se Maria. - Foi castigo de Deus por eu querer ter um filho, já estando tão velha e cansada.

            -Deixa lá isso mulher...não foi nada. São coisas do destino. Às vezes há crianças que nascem com     malformações e até outras deficiências mas os pais adoraram-nas à mesma e querem para elas o      melhor. Deveríamos permitir ao Maurotauro que saísse deste quarto e pudesse circular pela hospedaria e pelo campo. - Disse Manuel, chamando a mulher à razão.

            -Não Manuel que dizes...se o vissem o que não fariam ao nosso menino, quanta zombaria e chacota ele não sofreria? Quantos insultos e agressões não lhe dirigiriam? Não quero Manuel... não quero o meu menino exposto aos olhares mal intencionados do mundo. Quero protegê-lo para sempre! - Dizia Maria a chorar.

            -E que faremos mulher, onde esconderemos a criança. Os hóspedes andam a ficar receosos, o negócio está a descair. As pessoas perguntam por ti e tu não apareces e eu já nem sei que desculpa lhes dar.

O casal ficou durante algum tempo a pensar e a matutar numa solução.

À noite o Manuel trouxe outra vez as moedas, com que lhe tinham pago os serviços durante o dia. Contou-as e foi buscar o pote, para as guardar

            -Este já está cheio, Maria. Temos que o ir esconder, junto dos outros, lá dentro da caverna por baixo do adro da igreja.

            -Vai sim marido e não te esqueças que o nosso tesouro, pertence à Nossa Senhora da Assunção. -  Lembrou a Maria.

            -Deixa estar mulher que ela guarda-o bem! - Respondeu o Manuel.

Foi nesse momento que Maria se lembrou de uma solução.

            -Manuel e se entregássemos também o nosso menino, à guarda da Senhora da Assunção.

            -E como faríamos isso, mulher? - Perguntou Manuel muito intrigado.

            -E se nós alargássemos toda a caverna subterrânea, onde enterramos o nosso tesouro  e a transformássemos num pequeno palácio para abrigar o nosso filho? Aí, nesse lugar, ele poderia viver com todas as comodidades durante o dia e à noite, quando os hóspedes estivessem a descansar, poderia então sair e passear connosco.

A Manuel pareceu-lhe uma excelente ideia e não demorou a colocá-la em prática. Escavou durante noites e noites a fio até alargar a caverna subterrânea a toda a extensão da igreja, construindo, entre outros compartimentos, um grande quarto e uma enorme sala. Depois pegou num dos seus potes cheios de moedas de ouro e colocou-o em cima do lume, fundindo o ouro e forrando com a sua folha, todos os tectos e paredes do quarto e da sala. Mais tarde, foi à cidade de Beja,  com outro cofre cheio de dinheiro e trocou-o pelas melhores tapeçarias, quadros e mobiliário do reino. Em pouco tempo tinha conseguido construir um pequeno palácio para o Maurotauro. Depois foi só colocá-lo lá dentro e arranjar uma grade de ferro, muito grossa, para fechar a entrada. Por cima dessa grade, que ficou à entrada do adro da igreja, colocou Manuel,  madeira e terra, para disfarçar o lugar.

Maurotauro vivia ali durante o dia e recebia à noite a visita dos pais. Para que o filho não se assustasse, Maria combinou com ele um sinal. Só se deveria aproximar da entrada quando ouvisse o som do esfregar dos seus pés sobre a terra e a madeira. Esse sinal só era válido, quando o sino não tocasse, porque o toque do sino, indicava que haveria cerimónias na igreja, tais como missas e casamentos e nessa altura era muito perigoso ele aparecer.  E assim faziam. Maria aproximava-se com cuidado, levando comida e guloseimas e esfregava os seus pés na entrada da caverna e nessa altura Maurotauro aparecia, para abraçar a mãe.  Depois saíam pela calada da noite e passeavam juntos pelas imediações do "Bom-albergue". A brincadeira preferida de Maurotauro era correr livremente à volta da igreja, enquanto a mãe o esperava, sentada nas escadas do campanário . Ele corria uma vez em volta da igreja e quando chegava junto da mãe, dava-lhe uma carinhosa lambidela e dizia: Mãaa!

            -Um beijinho para a mãe...obrigado! - Confirmava Maria comovida.

Depois ele dava uma segunda volta e quando passava pela mãe, dizia: Pãaa! E dava-lhe outra lambidela ternurenta.

            -Ah! Lindo menino, um beijinho para o pai...obrigado!

Uma terceira volta e Maurotauro, parando junto da mãe, dizia: Mauuu!

Maria sorria e era ela quem, nessa altura, lhe dava dois grandes e afectuosos beijos, um de cada lado da cara:

            -Um grande beijo da mãezinha e um grande beijo do paizinho!

Nessas noites em que havia luar e as brincadeiras podiam ser demoradas, Maria ficava com o filho dentro da caverna e saía antes do sol nascer.

Assim foram passando os anos em "Bom-Albergue". Maurotauro estava crescido e  tornara-se numa poderosa e robusta criatura, com uma cabeleira azul ondulada e uns olhos vermelhos escaldantes. Enquanto Maurotauro ficava corpulento e forte como um touro, Maria e Manuel, estavam a ficar cada vez mais velhinhos. O filho entretinha-se durante o dia, dentro da caverna subterrânea, a contar as moedas do seu tesouro, separando as de cobre, as de prata e as de ouro e à noite saia para passear com a mãe. Com o passar dos anos o tesouro ficou cada vez maior e corria já um certo boato de que por baixo da igreja estariam enterradas grandes riquezas.

Certa noite quando todos já dormiam, dois ladrões foram assaltar o Bom-Albergue. Ao entrarem em casa, Manuel e Maria fizeram-lhe frente. Como os dois ladrões eram muito fortes empurraram os velhotes de cima das escadas e eles não conseguiram resistir à queda e morreram. Os dois ladrões revistaram a casa toda à procura do tesouro e como não encontraram nada, resolveram ir escavar em volta da igreja, usando para o efeito, duas pás de ferro. Quando Maurotauro, que dormia muito quietinho no seu palácio subterrâneo, começou a ouvir o som das pás à arrastar pela terra, pareceu-lhe escutar o som do esfregar dos pés de sua mãe, a avisar que o vinha visitar. Aproximou-se da entrada mas como não via a figura da mãe mas continuava a ouvir o arrastar dos seus pés, saiu da caverna e foi procurá-la. Como era seu hábito de brincadeira, começou a correr em volta da igreja, em direcção ao local onde os ladrões estavam a escavar. Estes ao verem aparecer aquela medonha criatura, largaram as pás e começaram a fugir à frente dele. À segunda volta Maurotauro alcançou-os e deu-lhes várias marradas, com tanta violência, que os deixou estendidos por terra. Os hóspedes acordados pelos gritos dos ladrões, acorreram a tocar o sino. Nessa altura, como a mãe lhe tinha ensinado, Maurotauro recolheu-se ao seu palácio subterrâneo para que ninguém o visse. Veio a guarda prendeu os ladrões e as gentes da terra trataram do funeral do Manuel e da Maria. A estalagem do Bom-Albergue foi fechada e Maurotauro vive agora, eternamente, no seu palácio de ouro, por baixo da igreja.

Muitas pessoas ainda sonham com o tesouro e algumas delas ficam tentadas em ir à sua procura. É preciso é não esquecer que ao ouvir um som que lhe recorde o esfregar dos pés de sua mãe, Maurotauro sairá da caverna mais enfurecido do que nunca e para que ele não fique para sempre à solta, alguém terá que subir a estreita escada do campanário e conseguir tocar o sino!

Ainda está disposto a experimentar?