Uma história da Freguesia de Alqueva
Certa madrugada saíram para a caça, nas serranias da freguesia de Alqueva dois homens jovens de nome António de Cima e Lourenço de Baixo. Assim se tratavam porque António habitava o Monte Grande de Cima e Lourenço o Monte Santo de Baixo. Eram grandes amigos desde há muito tempo e juntavam-se muitas vezes para sair para os matos em busca de coelhos e lebres, perdizes e patos ou outras quaisquer peças de caça pequenas. Hoje porém era a primeira vez que se aventuravam em busca de caça grossa.
António de Cima era um rapaz bem parecido e muito conversador. Tinha uma memória fora do comum, citava textos e histórias de cor e sabia fazer versos e quadras populares como ninguém. Lourenço de Baixo, tinha um carácter jovial e alegre, sempre disposto a fazer um gracejo ou a dizer uma piada.
Ainda madrugada escura, os dois homens embrenharam-se pelos matos, subindo outeiros e atravessando vales, pelo meio de tojos e urzes, estevas e rosmaninho em busca das terras fossadas pelos javardos, caça grossa que era muito apreciada.
Cada um levava o seu potente arco, munido de flechas de pontas especiais e uma faca de mato para desbastar a vegetação e poder abrir caminho por entre a serra. Seguiam na esperança de que a caçada viesse a render, pelo menos, um bom “bicho” que servisse de complemento à alimentação da família.
-Ó Lourenço e se eu visse um vale fossado e não fosse um javali?! - António metia conversa porque o amigo ia muito sisudo e compenetrado.
-Baixinho...muito baixinho que eu já estou a ver pequenas pegadas mas a mãe pode andar por perto! - Alertava Lourenço, com os olhos colados ao chão por entre matos amagados, sinal de que alguns bichos pernoitavam por perto.
-Que grandes “soladas” de medronhos há por estas bandas... - Distraía-se António, enquanto apanhava do chão uma mão cheia de medronhos vermelhos, que de tão maduros não tinham resistido a manter-se nos ramos.
-Ó rapaz não te metas nos medronhos...logo de manhã! - Avisou Lourenço, catando o pasto, onde lhe parecera ver um rasto.
-Ó medronho, medronheira, aguardente apreciada, por cheirar a aguardente não beijei a minha amada! - Começou António a cantar, em jeito de marcha popular!
-Uma tojeira de cabelos velhos. Afinal é animal adulto...e deve andar por perto! - Alarmou-se Lourenço.
-Calma amigo, porque não te sentas nesta rocha e não comes uns medronhos fresquinhos.
Lourenço levantou a vista e fitou o amigo.
-Com um javardo no vale, estando a terra em remoinho, tu só pensas em comer uns medronhos madurinhos!
António desatou a rir. Às vezes os amigos entretinham-se a cantar à desgarrada.
-Comi agora uns medronhos, tão doces e madurinhos que já tenho a cabeça à volta, como se bebesse vinho!
-Vê lá não caias da rocha e dês de cara na fossa! - Rematou Lourenço em jeito de troça!
-Adiante... - Decidiu António, levantando-se da pedra com o bucho cheio de medronhos. - Vamos lá caçar o javardo. Um para ti e outro para mim.
Os amigos lá continuaram a marcha em direcção aos matagais do Guadiana, seguindo o curso de um ribeiro que passava na Corte Serrão.
-E se nos sai um lobo? - Lembrou-se António. - Há por aqui um lugar que se chama “mãe dos lobos”.
-Ahc...e os uivos? Já ouviste algum. - Desvalorizou Lourenço. - É preciso é ter cuidado para não nos perdermos.
-Seguindo o rio não há que enganar.
-Mas ainda está longe e os matos estão cada vez mais densos. - Verificou Lourenço.
Foi nesse momento que um estranho e vibrante urro, ecoou pelos montes, fazendo tremer os troncos e agitar as folhas. Os pássaros esvoaçaram assustados e os caçadores especaram em silêncio.
Outro urro se lhe seguiu. Este foi ainda mais forte e profundo. Quase um choro, um lamento!
-Que coisa é esta? - Sussurrou António para o companheiro.
Lourenço só se atreveu a encolher os ombros.
Esperaram mais algum tempo sem se mexerem até que o som se desvaneceu e não retornou. Em seu lugar, um ligeiro ruído foi surgindo e os caçadores puderam comprovar a presença de um pequeno javali, fossando nas margens enlameadas do ribeiro.
-Shiuuu! É a nossa oportunidade.
-O quê? Matar esse pequeno bicho? - Comentou António.
-Tudo o que vier à rede é peixe. E quanto mais rápido nos afastarmos daqui melhor.
-Eu não quero essa “alminha”. - Recusou-se António.
Lourenço preparou o arco e apontou a arma. A flecha passou de raspão junto ao animal e este fugiu assustado.
António soltou uma risada.
-Parecia um pequeno gato a fugir à nossa frente, só tu queres levar um rato em vez de um bicho valente!
Lourenço ia responder à letra mas por detrás de uma grande moita surgiu um vulto negro, tão rápido e possante que devastava a vegetação com a sua passagem. Quase a galope, com a boca aberta e os dentes afiados a mãe javali, atacava sem dó nem piedade, os intrusos que se atreviam a molestar o seu adorado filhote.
Cada um escapou-se por onde pode. António que era de cima, subiu a uma azinheira. Lourenço que era de baixo escondeu-se numa pequena saliência nas rochas onde a “javarda” não conseguia entrar.
Passou-se a manhã, deu o meio-dia e anoiteceu sem que o “bicho valente” saísse das redondezas.
O cair da noite trouxe sons estranhos e perturbadores e os amigos receavam que para além da guarda que o bicho lhes fazia, viesse a juntar-se o som daqueles urros estranhos e temerosos.
A azinheira de António ficava mesmo por cima da rocha de Lourenço e embora aquele já tivesse feito várias tentativas para flechar o animal, nenhuma tinha corrido bem e toda a gente sabe que um “javali ferido é pior que um urso enraivecido”.
A fome apertava cada vez mais e o cansaço vencia os homens cada um no seu lugar. O som abafado do bafo da “javarda”, continuava a indicar que o animal ainda estava por perto.
-Lourenço, ó Lourenço...como nos safamos desta? - Perguntava António em surdina.
-Estamos tramados companheiro! - Respondia o amigo do interior do rochedo.
E sempre que as vozes sobressaíam, agitava-se o resfolgar da “javarda”.
-Eu não te dizia que esta serra, escondia animais ferozes!
-Mas nós viemos em busca deles. Não tínhamos era experiência para os caçar. - Lembrou Lourenço, para depois concluir:
-Enquanto eu me lembrar desta, já só quero ver “javalis a assar em cima de uma grelha”! - “Quero ver um javali sobre uma grelha deitado e só o hei-de comer, quando estiver bem passado”.
António não pode conter o riso.
-Shiuuu! - Olha a javarda que ainda não está assada. - Ironizou mais uma vez Lourenço.
-E eu prometo casar descalço na ermida na Santo António! - Piso a calçada, descalço, no encalço do meu amor...(começou a trautear)
As palavras de António foram abafadas pelo som ensurdecedor que surgiu novamente e urros violentos, voltaram a ecoar pela serra. O silêncio da noite propagava-os agora a uma dimensão assustadora!
A cada urro os homens estremeciam e a “javarda” agitava-se furiosa.
-António... estes urros são demoníacos! - Atreveu-se a dizer Lourenço.
-São quase um lamento, um chamamento! - Tremeu António. - Sabes Lourenço, aqui por estas bandas, numa quarta-feira de cinzas, dois caçadores muito famosos, Pedro e Henrique, embrenharam-se para caçar nos matos da serra de Portel, acompanhados dos seus monteiros de pé e outros criados e levando consigo grandes matilhas de cães...
Um urro mais agudo e violento, fez António calar a narrativa.
-Está mais perto...-Assegurou Lourenço.
A “javarda” voltou a agitar-se e António aguardou outro urro.
-Quem eram esses caçadores? - Interessou-se Lourenço.
-Dois filhos de el-rei, D. João I. Os infantes D. Pedro e D. Henrique. - Aproveitou António para dizer, enquanto outro urro não ecoava.
-E que caçaram eles? Algum demónio?
António não respondeu de imediato, porque outro urro feroz se fez sentir.
A “javarda” levantou-se e abandonou o posto, reunindo os filhotes junto de si.
-Lourenço... a “javarda” parece estar de marcha. Mais um urro e vai-se!
-Parece que também ela está com medo! O pior é que nos livramos de um perigo e espreita outro. - Disse Lourenço.
Um pequeno silêncio fez-se entre os homens, para mais uma vez Lourenço perguntar:
-O que caçaram então os príncipes?
António retomou a narrativa:
-Enquanto circulavam pelos cumes dos cerros, subindo e descendo, atiçando os cães a levantar a caça, eis que lhes surge, galgando a ladeira, uma poderosa ursa, que ao ficar em pé media mais de três metros de altura!
-Uma URSA!!!
-Sim senhor, uma ursa enorme que ao ver-se cercada pelos cães, fez violentos ataques à matilha, pisando e ferindo os cães e atirando-se com violência sobre os homens.
-E os príncipes?
-Como caçadores destemidos que eram, pegaram nas lanças e nos chuços e conseguiram dominar a fera.
-Mataram-na?
-Sim... ainda que a muito custo, porque era um bicho bem valente e debateu-se com uma força avassaladora...
Uma sequência de urros, invadiu de novo o espaço e os homens encolheram-se nos seus lugares. Os pequenos javalis guincharam, espalhando-se pelo mato e a “javarda” foi obrigada a desaparecer em sua busca.
-Já se foi...- Sussurrou Lourenço.
-E estes urros não indicarão coisa pior. - Lembrou António.
-E que fizeram os príncipes com a ursa?
-Exibiram-na como troféu e mandaram-na oferecer ao pai que estava com a corte em Montemor-o-Novo.
-E quando se passou tal feito? - Perguntou Lourenço.
-Há cerca de 20 anos! Em 1415.
-Só?! - Alarmou-se Lourenço. - António tu que estás em posição mais alta e agora que a manhã quer romper, vigia os matos, pois à primeira oportunidade temos que escapar deste lugar. Algo me diz que qualquer coisa feroz rodeia este espaço.
António apurou a vista por entre os ramos das árvores e viu ao longe, ir ribeiro abaixo, a “javarda e os pequenos javalis”. Depois olhou para a grande mancha de medronheiros que ficava no cume do monte. Ali pareceu-lhe ver agitar os ramos como se um vendaval imaginário se abatesse sobre eles. Uma cabeça redonda e peluda, de um tom pardo, um focinho escuro com uma mancha branca e uma enorme e devoradora boca, sugava com mestria os frutos vermelhos dos medronheiros.
António estarreceu.
-Lourenço... - Chamou. - Não conclui a minha história!
-Não quero saber. Temos é que escapar daqui, antes que a “javarda” volte. - Sentenciou Lourenço.
-A “javarda” não volta. Partiu ribeiro abaixo.
-Então é hora de sair. - Disse Lourenço, enquanto se apressava a abandonar a saliência na rocha.
-Deixa-te estar amigo. Esqueci-me de te dizer que a ursa que mataram, tinha tido uma cria há pouco tempo e receio que essa mesma cria, agora adulta, esteja mesmo por detrás das tuas costas, a empinar-se aos medronheiros!
Lourenço enfiou-se à pressa na saliência da pedra:
-Prometo uma grelha de prata a São Lourenço se me resgatar são e salvo!
-E eu prometo uma marcha a Santo António.
-E isso lá é sacrifício?! - Agitou-se Lourenço. -Numa situação terrível como esta só pensas em folgar.
-Meu amigo cada um dá o que pode. E agora cala-te e sossega que a URSA vem direito a nós!
No seu caminhar bamboleante a ursa aproximou-se dos caçadores. Cheirou a rocha e empinou-se à azinheira. Depois soltou três urros de choro e lamento. Ali mesmo, naquele outeiro tinham um dia matado a sua mãe!
António e Lourenço sentiram a sua dor. Um tornou-se escrivão e o outro cozinheiro. Nenhum porém ficou caçador!
Lourenço fez, com as suas próprias mãos, uma grelha de prata que devia a São Lourenço.
António fez uma marcha popular:
Para fazer uma caçada
Deixaram a sua terra
Presos por uma javarda
ficaram no meio da serra
À noite soavam urros
De quem por sua mãe chama
Era o chorar de uma ursa
Nos cerros do Guadiana
Em terras de medronheiros
Cobertas de urzes e estevas
Lá está o outeiro da ursa
Nas serranias de Alqueva
Lá em cima está o tiroliroliro
Cá em baixo está o tiroliroló
Juntaram-se os dois à esquina
A tocar a concertina
A dançar o solidó!
Notas: Bi liografia fundamental - GONÇALVES, José Pires, "Uma Fermosa Montaria de Príncipes nos matos da Serra de Portel no Século XV", Reguengos de Monsaraz, 1983
António de Cima era um rapaz bem parecido e muito conversador. Tinha uma memória fora do comum, citava textos e histórias de cor e sabia fazer versos e quadras populares como ninguém. Lourenço de Baixo, tinha um carácter jovial e alegre, sempre disposto a fazer um gracejo ou a dizer uma piada.
Ainda madrugada escura, os dois homens embrenharam-se pelos matos, subindo outeiros e atravessando vales, pelo meio de tojos e urzes, estevas e rosmaninho em busca das terras fossadas pelos javardos, caça grossa que era muito apreciada.
Cada um levava o seu potente arco, munido de flechas de pontas especiais e uma faca de mato para desbastar a vegetação e poder abrir caminho por entre a serra. Seguiam na esperança de que a caçada viesse a render, pelo menos, um bom “bicho” que servisse de complemento à alimentação da família.
-Ó Lourenço e se eu visse um vale fossado e não fosse um javali?! - António metia conversa porque o amigo ia muito sisudo e compenetrado.
-Baixinho...muito baixinho que eu já estou a ver pequenas pegadas mas a mãe pode andar por perto! - Alertava Lourenço, com os olhos colados ao chão por entre matos amagados, sinal de que alguns bichos pernoitavam por perto.
-Que grandes “soladas” de medronhos há por estas bandas... - Distraía-se António, enquanto apanhava do chão uma mão cheia de medronhos vermelhos, que de tão maduros não tinham resistido a manter-se nos ramos.
-Ó rapaz não te metas nos medronhos...logo de manhã! - Avisou Lourenço, catando o pasto, onde lhe parecera ver um rasto.
-Ó medronho, medronheira, aguardente apreciada, por cheirar a aguardente não beijei a minha amada! - Começou António a cantar, em jeito de marcha popular!
-Uma tojeira de cabelos velhos. Afinal é animal adulto...e deve andar por perto! - Alarmou-se Lourenço.
-Calma amigo, porque não te sentas nesta rocha e não comes uns medronhos fresquinhos.
Lourenço levantou a vista e fitou o amigo.
-Com um javardo no vale, estando a terra em remoinho, tu só pensas em comer uns medronhos madurinhos!
António desatou a rir. Às vezes os amigos entretinham-se a cantar à desgarrada.
-Comi agora uns medronhos, tão doces e madurinhos que já tenho a cabeça à volta, como se bebesse vinho!
-Vê lá não caias da rocha e dês de cara na fossa! - Rematou Lourenço em jeito de troça!
-Adiante... - Decidiu António, levantando-se da pedra com o bucho cheio de medronhos. - Vamos lá caçar o javardo. Um para ti e outro para mim.
Os amigos lá continuaram a marcha em direcção aos matagais do Guadiana, seguindo o curso de um ribeiro que passava na Corte Serrão.
-E se nos sai um lobo? - Lembrou-se António. - Há por aqui um lugar que se chama “mãe dos lobos”.
-Ahc...e os uivos? Já ouviste algum. - Desvalorizou Lourenço. - É preciso é ter cuidado para não nos perdermos.
-Seguindo o rio não há que enganar.
-Mas ainda está longe e os matos estão cada vez mais densos. - Verificou Lourenço.
Foi nesse momento que um estranho e vibrante urro, ecoou pelos montes, fazendo tremer os troncos e agitar as folhas. Os pássaros esvoaçaram assustados e os caçadores especaram em silêncio.
Outro urro se lhe seguiu. Este foi ainda mais forte e profundo. Quase um choro, um lamento!
-Que coisa é esta? - Sussurrou António para o companheiro.
Lourenço só se atreveu a encolher os ombros.
Esperaram mais algum tempo sem se mexerem até que o som se desvaneceu e não retornou. Em seu lugar, um ligeiro ruído foi surgindo e os caçadores puderam comprovar a presença de um pequeno javali, fossando nas margens enlameadas do ribeiro.
-Shiuuu! É a nossa oportunidade.
-O quê? Matar esse pequeno bicho? - Comentou António.
-Tudo o que vier à rede é peixe. E quanto mais rápido nos afastarmos daqui melhor.
-Eu não quero essa “alminha”. - Recusou-se António.
Lourenço preparou o arco e apontou a arma. A flecha passou de raspão junto ao animal e este fugiu assustado.
António soltou uma risada.
-Parecia um pequeno gato a fugir à nossa frente, só tu queres levar um rato em vez de um bicho valente!
Lourenço ia responder à letra mas por detrás de uma grande moita surgiu um vulto negro, tão rápido e possante que devastava a vegetação com a sua passagem. Quase a galope, com a boca aberta e os dentes afiados a mãe javali, atacava sem dó nem piedade, os intrusos que se atreviam a molestar o seu adorado filhote.
Cada um escapou-se por onde pode. António que era de cima, subiu a uma azinheira. Lourenço que era de baixo escondeu-se numa pequena saliência nas rochas onde a “javarda” não conseguia entrar.
Passou-se a manhã, deu o meio-dia e anoiteceu sem que o “bicho valente” saísse das redondezas.
O cair da noite trouxe sons estranhos e perturbadores e os amigos receavam que para além da guarda que o bicho lhes fazia, viesse a juntar-se o som daqueles urros estranhos e temerosos.
A azinheira de António ficava mesmo por cima da rocha de Lourenço e embora aquele já tivesse feito várias tentativas para flechar o animal, nenhuma tinha corrido bem e toda a gente sabe que um “javali ferido é pior que um urso enraivecido”.
A fome apertava cada vez mais e o cansaço vencia os homens cada um no seu lugar. O som abafado do bafo da “javarda”, continuava a indicar que o animal ainda estava por perto.
-Lourenço, ó Lourenço...como nos safamos desta? - Perguntava António em surdina.
-Estamos tramados companheiro! - Respondia o amigo do interior do rochedo.
E sempre que as vozes sobressaíam, agitava-se o resfolgar da “javarda”.
-Eu não te dizia que esta serra, escondia animais ferozes!
-Mas nós viemos em busca deles. Não tínhamos era experiência para os caçar. - Lembrou Lourenço, para depois concluir:
-Enquanto eu me lembrar desta, já só quero ver “javalis a assar em cima de uma grelha”! - “Quero ver um javali sobre uma grelha deitado e só o hei-de comer, quando estiver bem passado”.
António não pode conter o riso.
-Shiuuu! - Olha a javarda que ainda não está assada. - Ironizou mais uma vez Lourenço.
-E eu prometo casar descalço na ermida na Santo António! - Piso a calçada, descalço, no encalço do meu amor...(começou a trautear)
As palavras de António foram abafadas pelo som ensurdecedor que surgiu novamente e urros violentos, voltaram a ecoar pela serra. O silêncio da noite propagava-os agora a uma dimensão assustadora!
A cada urro os homens estremeciam e a “javarda” agitava-se furiosa.
-António... estes urros são demoníacos! - Atreveu-se a dizer Lourenço.
-São quase um lamento, um chamamento! - Tremeu António. - Sabes Lourenço, aqui por estas bandas, numa quarta-feira de cinzas, dois caçadores muito famosos, Pedro e Henrique, embrenharam-se para caçar nos matos da serra de Portel, acompanhados dos seus monteiros de pé e outros criados e levando consigo grandes matilhas de cães...
Um urro mais agudo e violento, fez António calar a narrativa.
-Está mais perto...-Assegurou Lourenço.
A “javarda” voltou a agitar-se e António aguardou outro urro.
-Quem eram esses caçadores? - Interessou-se Lourenço.
-Dois filhos de el-rei, D. João I. Os infantes D. Pedro e D. Henrique. - Aproveitou António para dizer, enquanto outro urro não ecoava.
-E que caçaram eles? Algum demónio?
António não respondeu de imediato, porque outro urro feroz se fez sentir.
A “javarda” levantou-se e abandonou o posto, reunindo os filhotes junto de si.
-Lourenço... a “javarda” parece estar de marcha. Mais um urro e vai-se!
-Parece que também ela está com medo! O pior é que nos livramos de um perigo e espreita outro. - Disse Lourenço.
Um pequeno silêncio fez-se entre os homens, para mais uma vez Lourenço perguntar:
-O que caçaram então os príncipes?
António retomou a narrativa:
-Enquanto circulavam pelos cumes dos cerros, subindo e descendo, atiçando os cães a levantar a caça, eis que lhes surge, galgando a ladeira, uma poderosa ursa, que ao ficar em pé media mais de três metros de altura!
-Uma URSA!!!
-Sim senhor, uma ursa enorme que ao ver-se cercada pelos cães, fez violentos ataques à matilha, pisando e ferindo os cães e atirando-se com violência sobre os homens.
-E os príncipes?
-Como caçadores destemidos que eram, pegaram nas lanças e nos chuços e conseguiram dominar a fera.
-Mataram-na?
-Sim... ainda que a muito custo, porque era um bicho bem valente e debateu-se com uma força avassaladora...
Uma sequência de urros, invadiu de novo o espaço e os homens encolheram-se nos seus lugares. Os pequenos javalis guincharam, espalhando-se pelo mato e a “javarda” foi obrigada a desaparecer em sua busca.
-Já se foi...- Sussurrou Lourenço.
-E estes urros não indicarão coisa pior. - Lembrou António.
-E que fizeram os príncipes com a ursa?
-Exibiram-na como troféu e mandaram-na oferecer ao pai que estava com a corte em Montemor-o-Novo.
-E quando se passou tal feito? - Perguntou Lourenço.
-Há cerca de 20 anos! Em 1415.
-Só?! - Alarmou-se Lourenço. - António tu que estás em posição mais alta e agora que a manhã quer romper, vigia os matos, pois à primeira oportunidade temos que escapar deste lugar. Algo me diz que qualquer coisa feroz rodeia este espaço.
António apurou a vista por entre os ramos das árvores e viu ao longe, ir ribeiro abaixo, a “javarda e os pequenos javalis”. Depois olhou para a grande mancha de medronheiros que ficava no cume do monte. Ali pareceu-lhe ver agitar os ramos como se um vendaval imaginário se abatesse sobre eles. Uma cabeça redonda e peluda, de um tom pardo, um focinho escuro com uma mancha branca e uma enorme e devoradora boca, sugava com mestria os frutos vermelhos dos medronheiros.
António estarreceu.
-Lourenço... - Chamou. - Não conclui a minha história!
-Não quero saber. Temos é que escapar daqui, antes que a “javarda” volte. - Sentenciou Lourenço.
-A “javarda” não volta. Partiu ribeiro abaixo.
-Então é hora de sair. - Disse Lourenço, enquanto se apressava a abandonar a saliência na rocha.
-Deixa-te estar amigo. Esqueci-me de te dizer que a ursa que mataram, tinha tido uma cria há pouco tempo e receio que essa mesma cria, agora adulta, esteja mesmo por detrás das tuas costas, a empinar-se aos medronheiros!
Lourenço enfiou-se à pressa na saliência da pedra:
-Prometo uma grelha de prata a São Lourenço se me resgatar são e salvo!
-E eu prometo uma marcha a Santo António.
-E isso lá é sacrifício?! - Agitou-se Lourenço. -Numa situação terrível como esta só pensas em folgar.
-Meu amigo cada um dá o que pode. E agora cala-te e sossega que a URSA vem direito a nós!
No seu caminhar bamboleante a ursa aproximou-se dos caçadores. Cheirou a rocha e empinou-se à azinheira. Depois soltou três urros de choro e lamento. Ali mesmo, naquele outeiro tinham um dia matado a sua mãe!
António e Lourenço sentiram a sua dor. Um tornou-se escrivão e o outro cozinheiro. Nenhum porém ficou caçador!
Lourenço fez, com as suas próprias mãos, uma grelha de prata que devia a São Lourenço.
António fez uma marcha popular:
Para fazer uma caçada
Deixaram a sua terra
Presos por uma javarda
ficaram no meio da serra
À noite soavam urros
De quem por sua mãe chama
Era o chorar de uma ursa
Nos cerros do Guadiana
Em terras de medronheiros
Cobertas de urzes e estevas
Lá está o outeiro da ursa
Nas serranias de Alqueva
Lá em cima está o tiroliroliro
Cá em baixo está o tiroliroló
Juntaram-se os dois à esquina
A tocar a concertina
A dançar o solidó!
Notas: Bi liografia fundamental - GONÇALVES, José Pires, "Uma Fermosa Montaria de Príncipes nos matos da Serra de Portel no Século XV", Reguengos de Monsaraz, 1983