Lendas do Concelho de Portel

Uma história da Freguesia de Alqueva

Certa madrugada saíram para a caça, nas serranias da freguesia de Alqueva dois homens jovens de nome António de Cima e Lourenço de Baixo. Assim se tratavam porque António habitava o Monte Grande de Cima e Lourenço o Monte Santo de Baixo. Eram grandes amigos desde há muito tempo e juntavam-se muitas vezes para sair para os matos em busca de coelhos e lebres, perdizes e patos ou outras quaisquer peças de caça pequenas. Hoje porém era a primeira vez que se aventuravam em busca de caça grossa.

            António de Cima era um rapaz bem parecido e muito conversador. Tinha uma memória fora do comum, citava textos e histórias de cor e sabia fazer versos e quadras populares como ninguém. Lourenço de Baixo, tinha um carácter jovial e alegre, sempre disposto a fazer um gracejo ou a dizer uma piada.

            Ainda madrugada escura, os dois homens embrenharam-se pelos matos, subindo outeiros e atravessando vales, pelo meio de tojos e urzes, estevas e rosmaninho em busca das terras fossadas pelos javardos, caça grossa que era muito apreciada.

            Cada um levava o seu potente arco, munido de flechas de pontas especiais e uma faca de mato para desbastar a vegetação e poder abrir caminho por entre a serra. Seguiam na esperança de que a caçada viesse a render, pelo menos, um bom “bicho” que servisse de complemento à alimentação da família.

            -Ó Lourenço e se eu visse um vale fossado e não fosse um javali?! - António metia conversa porque o amigo ia muito sisudo e compenetrado.

            -Baixinho...muito baixinho que eu já estou a ver pequenas pegadas mas a mãe pode andar por perto! - Alertava Lourenço, com os olhos colados ao chão por entre matos amagados, sinal de que alguns bichos pernoitavam por perto.

            -Que grandes “soladas” de medronhos há por estas bandas... - Distraía-se António, enquanto apanhava do chão uma mão cheia de medronhos vermelhos, que de tão maduros não tinham resistido a manter-se nos ramos.

            -Ó rapaz não te metas nos medronhos...logo de manhã! - Avisou Lourenço, catando o pasto, onde lhe parecera ver um rasto.

            -Ó medronho, medronheira, aguardente apreciada, por cheirar a aguardente não beijei a  minha amada! - Começou António a cantar, em jeito de marcha popular!

            -Uma tojeira de cabelos velhos. Afinal é animal adulto...e deve andar por perto! - Alarmou-se Lourenço.

            -Calma amigo, porque não te sentas nesta rocha e não comes uns medronhos fresquinhos.

            Lourenço levantou a vista e fitou o amigo.

            -Com um javardo no vale, estando a terra em remoinho, tu só pensas em comer uns medronhos madurinhos!

            António desatou a rir. Às vezes os amigos entretinham-se a cantar à desgarrada.

            -Comi agora uns medronhos, tão doces e madurinhos que já tenho a cabeça à volta, como se bebesse vinho!

            -Vê lá não caias da rocha e dês de cara  na fossa! - Rematou Lourenço em jeito de troça!

            -Adiante... - Decidiu António, levantando-se da pedra com o bucho cheio de medronhos. - Vamos lá caçar o javardo. Um para ti e outro para mim.

            Os amigos lá continuaram a marcha em direcção aos matagais do Guadiana, seguindo o curso de um ribeiro que passava na Corte Serrão.

            -E se nos sai um lobo? - Lembrou-se António. - Há por aqui um lugar que se chama “mãe dos lobos”.

            -Ahc...e os uivos? Já ouviste algum. - Desvalorizou Lourenço. - É preciso é ter cuidado para não nos perdermos.

            -Seguindo o rio não há que enganar.

            -Mas ainda está longe e os matos estão cada vez mais densos. - Verificou Lourenço.

            Foi nesse momento que um estranho e vibrante urro, ecoou pelos montes, fazendo tremer os troncos e agitar as folhas. Os pássaros esvoaçaram assustados e os caçadores especaram em silêncio.

            Outro urro se lhe seguiu. Este foi ainda mais forte e profundo. Quase um choro, um lamento!

            -Que coisa é esta? - Sussurrou António para o companheiro.

            Lourenço só se atreveu a encolher os ombros.

            Esperaram mais algum tempo sem se mexerem até que o som se desvaneceu e não retornou. Em seu lugar, um ligeiro ruído foi surgindo e os caçadores puderam comprovar a presença de um pequeno javali, fossando nas margens enlameadas do ribeiro.

            -Shiuuu! É a nossa oportunidade.

            -O quê? Matar esse pequeno bicho? - Comentou António.

            -Tudo o que vier à rede é peixe. E quanto mais rápido nos afastarmos daqui melhor.

            -Eu não quero essa “alminha”. - Recusou-se António.

            Lourenço preparou o arco e apontou a arma. A flecha passou de raspão junto ao animal e este fugiu assustado.

            António soltou uma risada.

            -Parecia um pequeno gato a fugir à nossa frente, só tu queres levar um rato em vez de um bicho valente!

            Lourenço ia responder à letra mas por detrás de uma grande moita surgiu um vulto negro, tão rápido e possante que devastava a vegetação com a sua passagem. Quase a galope, com a boca aberta e os dentes afiados a mãe javali, atacava sem dó nem piedade, os intrusos que se atreviam a  molestar o seu adorado filhote.

            Cada um escapou-se por onde pode. António que era de cima, subiu a uma azinheira. Lourenço que era de baixo escondeu-se numa pequena saliência nas rochas onde a “javarda” não conseguia entrar.

            Passou-se a manhã, deu o meio-dia e anoiteceu sem que o “bicho valente” saísse das redondezas.

            O cair da noite trouxe sons estranhos e perturbadores e os amigos receavam que para além da guarda que o bicho lhes fazia, viesse a juntar-se o som daqueles urros estranhos e temerosos.

            A azinheira de António ficava mesmo por cima da rocha de Lourenço e embora aquele já tivesse feito várias tentativas para flechar o animal, nenhuma tinha corrido bem e toda a gente sabe que um “javali ferido é pior que um urso enraivecido”.

            A fome apertava cada vez mais e o cansaço vencia os homens cada um no seu lugar. O  som abafado do bafo da “javarda”, continuava a indicar que o animal ainda estava por perto.

            -Lourenço, ó Lourenço...como nos safamos desta? - Perguntava António em surdina.

            -Estamos tramados companheiro! - Respondia o amigo do interior do rochedo.

            E sempre que as vozes sobressaíam, agitava-se o resfolgar da “javarda”.

            -Eu não te dizia que esta serra, escondia animais ferozes!

            -Mas nós viemos em busca deles. Não tínhamos era experiência para os caçar. - Lembrou Lourenço, para depois concluir:

            -Enquanto eu me lembrar desta, já só quero ver “javalis a assar em cima de uma grelha”! - “Quero ver um javali sobre uma grelha deitado e só o hei-de comer, quando estiver bem passado”.

            António não pode conter o riso.

            -Shiuuu! - Olha a javarda que ainda não está assada. - Ironizou mais uma vez Lourenço.

            -E eu prometo casar descalço na ermida na Santo António! -  Piso a calçada, descalço, no encalço do meu amor...(começou a trautear)

            As palavras de António foram abafadas pelo som ensurdecedor que surgiu novamente e urros violentos, voltaram a ecoar pela serra. O silêncio da noite propagava-os agora a uma dimensão assustadora!

            A cada urro os homens estremeciam e a “javarda” agitava-se furiosa.

            -António... estes urros são demoníacos! - Atreveu-se a dizer Lourenço.

            -São quase um lamento, um chamamento! - Tremeu António. - Sabes Lourenço, aqui por estas bandas, numa quarta-feira de cinzas, dois caçadores muito famosos, Pedro e Henrique, embrenharam-se para caçar nos matos da serra de Portel, acompanhados dos seus monteiros de pé e outros criados e levando consigo grandes matilhas de cães...

            Um urro mais agudo e violento, fez António calar a narrativa.

            -Está mais perto...-Assegurou Lourenço.

            A “javarda” voltou a agitar-se e António aguardou outro urro.

            -Quem eram esses caçadores? - Interessou-se Lourenço.

            -Dois filhos de el-rei, D. João I. Os infantes D. Pedro e D. Henrique. - Aproveitou António para dizer, enquanto outro urro não ecoava.

            -E que caçaram eles? Algum demónio?

            António não respondeu de imediato, porque outro urro feroz se fez sentir.

            A “javarda” levantou-se e abandonou o posto,  reunindo os filhotes junto de si.

            -Lourenço... a “javarda” parece estar de marcha. Mais um urro e vai-se!

            -Parece que também ela está com  medo! O pior é que nos livramos de um perigo e espreita outro. - Disse Lourenço.

            Um pequeno silêncio fez-se entre os homens, para mais uma vez Lourenço perguntar:

            -O que caçaram então os príncipes?

            António retomou a narrativa:

            -Enquanto circulavam pelos cumes dos cerros, subindo e descendo, atiçando os cães a levantar a caça, eis que lhes surge, galgando a ladeira, uma poderosa ursa, que ao ficar em pé media mais de três metros de altura! 

            -Uma URSA!!!

            -Sim senhor, uma ursa enorme que ao ver-se cercada pelos cães, fez violentos ataques à matilha, pisando e ferindo os cães e atirando-se com violência sobre os homens.

            -E os príncipes?

            -Como caçadores destemidos que eram, pegaram nas lanças e nos chuços e conseguiram dominar a fera.

            -Mataram-na?

            -Sim... ainda que a muito custo, porque era um bicho bem valente e debateu-se com uma força avassaladora...

            Uma sequência de urros, invadiu de novo o espaço e os homens encolheram-se nos seus lugares. Os pequenos javalis guincharam, espalhando-se pelo mato e a “javarda” foi obrigada a  desaparecer em sua busca.

            -Já se foi...- Sussurrou Lourenço.

            -E estes urros não indicarão coisa pior. - Lembrou António.

            -E que fizeram os príncipes com a ursa?

            -Exibiram-na como troféu e mandaram-na oferecer ao pai que estava com a corte em Montemor-o-Novo.

            -E quando se passou tal feito? - Perguntou Lourenço.

            -Há cerca de 20 anos! Em 1415.

            -Só?! - Alarmou-se Lourenço. - António tu que estás em posição mais alta e agora que a manhã quer romper, vigia os matos, pois à primeira oportunidade temos que escapar deste lugar. Algo me diz que qualquer coisa feroz rodeia este espaço.

            António apurou a vista por entre os ramos das árvores e viu ao longe, ir ribeiro abaixo, a “javarda e os pequenos javalis”. Depois olhou para a grande mancha de medronheiros que ficava no cume do monte. Ali pareceu-lhe ver agitar os ramos como se um vendaval imaginário se abatesse sobre eles. Uma cabeça redonda e peluda, de um tom pardo, um focinho escuro com uma mancha branca e uma enorme e devoradora boca, sugava com mestria os frutos vermelhos dos medronheiros.

            António estarreceu.

            -Lourenço... - Chamou. - Não conclui a minha história!

            -Não quero saber. Temos é que escapar daqui, antes que a “javarda” volte. - Sentenciou Lourenço.

            -A “javarda” não volta. Partiu ribeiro abaixo.

            -Então é hora de sair. - Disse Lourenço, enquanto se apressava a abandonar a saliência na rocha.

            -Deixa-te estar amigo. Esqueci-me de te dizer que a ursa que mataram, tinha tido uma cria há pouco tempo e receio que essa mesma cria, agora adulta, esteja mesmo por detrás das tuas costas, a empinar-se aos medronheiros!

            Lourenço enfiou-se à pressa na saliência da pedra:

            -Prometo uma grelha de prata a São Lourenço se me resgatar são e salvo!

            -E eu prometo uma marcha a Santo António.

            -E isso lá é sacrifício?! - Agitou-se Lourenço. -Numa situação terrível como esta só pensas em folgar.

            -Meu amigo cada um dá o que pode. E agora cala-te e sossega que a URSA vem direito a nós!

            No seu caminhar bamboleante a ursa aproximou-se dos caçadores. Cheirou a rocha e empinou-se à azinheira. Depois soltou três urros de choro e lamento. Ali mesmo, naquele outeiro tinham um dia matado a sua mãe!

            António e Lourenço sentiram a sua dor. Um tornou-se escrivão e o outro cozinheiro. Nenhum porém ficou caçador!

            Lourenço fez, com as suas próprias mãos, uma grelha de prata que devia a São Lourenço.

            António fez uma marcha popular:

                       

                        Para fazer uma caçada

                        Deixaram a sua terra

                        Presos por uma javarda

                        ficaram no meio da serra

                        

                        À noite soavam urros

                        De quem por sua mãe chama

                        Era o chorar de uma ursa

                        Nos cerros do Guadiana

                       

                        Em terras de medronheiros

                        Cobertas de urzes e estevas

                        Lá está o outeiro da ursa

                        Nas serranias de Alqueva

 

                        Lá em cima está o tiroliroliro

                        Cá em baixo está o tiroliroló

                        Juntaram-se os dois à esquina

                        A tocar a concertina

                        A dançar o solidó!



Notas: Bi liografia fundamental - GONÇALVES, José Pires, "Uma Fermosa Montaria de Príncipes nos matos da Serra de Portel no Século XV", Reguengos de Monsaraz, 1983