Lendas do Concelho de Portel

Lenda da Freguesia de Portel

Há 750 anos atrás nasceu a vila de Portel. Tudo começou na corte de D. Afonso III, rei que ficou conhecido como o "Bolonhês" porque passou parte da sua vida em França, no Condado da Bolonha. D. Afonso III levou consigo para França, um nobre chamado D. João de Aboim de quem se tornou muito amigo.

Quando regressaram a Portugal havia problemas no reino e D. Afonso acabou por ser nomeado rei, vindo a ocupar o lugar do seu irmão D. Sancho.

Por estes tempos ainda se lutava pela reconquista cristã porque os mouros ainda habitavam uma parte do Algarve. D. Afonso III, com a ajuda de outros cavaleiros, os chamados "Cruzados" que combatiam pela fé cristã, conseguiram em 1247, conquistar definitivamente o Algarve aos muçulmanos. Um desses cavaleiros era D. João Peres de Aboim, que continuava a acompanhar e auxiliar o rei em todos os serviços que ele lhe pedisse. Em troca desses favores, resolveu o rei doar ao seu vassalo grandes extensões de terra em várias regiões do reino. Um desses herdamentos veio a ser a região que hoje corresponde mais ou menos ao concelho de Portel.

Retirando várias partes de território aos concelhos de Évora, Monsaraz e Beja, D. Afonso III doou ao seu companheiro uma grande extensão de terra que abarcava toda a serra de Portel.

No ano de 1261, estando a corte em Lisboa, D. Afonso III, concedeu uma carta de autorização para que D. João de Aboim pudesse construir, nas suas novas terras, um castelo e fortaleza.

D. João de Aboim casou com D. Marinha Afonso e teve dois filhos, um rapaz e uma rapariga. O primogénito que era o rapaz, chamava-se Pedro Eanes e a rapariga veio a chamar-se Maria Eanes. D. Pedro Eanes já tinha 14 anos quando o seu pai decidiu reunir a comitiva e embarcar para as suas novas terras no Além-Tejo. O filho, como excelente cavaleiro que já era, acompanhou-o em toda a viagem.

Por esses tempos as viagens eram difíceis e demoradas. A maior parte das gentes tinham que palmilhar o caminho a pé, carregados com as bagagens, pois montar a cavalo era privilégio que só os Senhores podiam ter.

D. João de Aboim desejoso de chegar aos seus novos domínios, apressou a viagem e durante todo o caminho, andou num verdadeiro corrupio, para cima e para baixo, incitando os soldados e os servos a apressarem o passo para chegarem rapidamente, à cidade de Évora. Como D. João não conhecia muito bem o seu novo termo e este ocupava toda a serra de Portel, foi necessário pedir indicações em Évora, sobre o caminho que deveriam seguir para chegar ao lugar de "Portel Mafomade" que o mesmo é dizer ao lugar de "Portel-o-Velho". Em Évora porém, alguns contratempos esperavam o novo Senhor!

As gentes dos concelhos de Évora, Monsaraz e Beja, que antes tinham a posse de todas aquelas terras, não viam com bons olhos aquela doação nem a presença daquele Rico-Homem como novo Senhor da serra e como tal tinham-se reunido e decidido arranjar um estratagema que dificultasse a vida ao fidalgo.

Naquela manhã, dirigindo-se D. João e seu filho às casas do concelho de Évora, pediram ao escrivão um mapa que lhes ensinasse o caminho. Ele, mostrando-se muito pronto mas instruído pelos outros homens do concelho, entregou-lhe um extenso pergaminho onde se traçava o caminho até ao lugar de Portel-o-Velho. Esse traçado seguia várias estradas, ribeiras e rios, cumes de montes, herdades e fontes, casais e lugares. Ao olhar para o mapa, D. João ficou muito confuso e perguntou ao escrivão:

            -Tendes a certeza que terei que seguir todos estes pontos para chegar a Portel-o-Velho?

O escrivão respondeu, fazendo uma grande vénia:

-Pode Vossa Senhoria ficar descansado que este é o caminho mais fácil, traçado através da  serra!

D. Pedro que estava a estudar o mapa referiu:

            -Mas Portel-o-Velho, não fica extra-matos, então porque diabo temos que atravessar a serra?

            -Senhor... - Disse o escrivão. Não há outra forma de chegar a Portel-o-Velho que fica extra-matos, senão caminhando por dentro dos matos!

            -Bem...sendo assim, temos que deitar mãos à obra e zarpar o quanto antes! - Desabafou D. João Aboim.

Seu filho aproximou-se e falou-lhe em surdina:

            -Meu pai, julgo que deveríamos pedir melhor conselho, pois Portel-o-Velho fica na direcção das Atalaias de Martim Fernandes e eu não vejo tal lugar assinalado no mapa.

            -Meu filho sigamos viagem pois é nosso dever agradecer e confiar no caminho traçado pelos homens-bons do concelho de Évora.

E dito isto despediram-se e mandaram a comitiva continuar viagem. D. João e o seu filho D. Pedro seguiam muito à frente da fila de gente, com o pergaminho na mão em busca dos lugares assinalados.

Depois de deixarem a cidade de Évora, rumaram para Sul em direcção ao primeiro ponto marcado no mapa: Lugar de “Ponte do Mendigo”.

Andadas algumas léguas, entraram numa propriedade toda semeada de trigo e cruzaram-se com o lavrador do lugar:

D. João aproximou-se e falou para o homem:

            -Tenha Vossa Senhoria um dia muito feliz.

            -Obrigado Senhor, sou o proprietário destas terras. - Disse o lavrador.

            -Eu sou o novo senhor desta serra e este é meu filho D. Pedro. Sabe o senhor se aqui é o lugar da “Ponte do Mendigo?

            O lavrador franziu a cara e um pouco zangado reclamou:

            -Ponte do Mendigo? O senhor graceja de mim?

            -De maneira nenhuma Senhor… - Desculpou-se D. João. - Veja que neste mapa diz que o primeiro lugar que hei-de encontrar é a “Ponte do Mendigo”. Por isso vos pergunto se o conhece.

            -Se conheço o quê? - Desafiou o lavrador.

            -O lugar de “Ponte do Mendigo”! - Reafirmou D. João.

            -Sabe o que lhe digo, meu Senhor, se pensa instalar-se nestas terras, fazendo troça das pessoas não se fará cá velho, por isso tenha cuidado com o que diz. Eu sou um ilustre lavrador e este lugar não é “Ponte do Mendigo” mas sim “Monte do Trigo”. E agora siga viagem antes que eu me veja obrigado a empunhar a minha espada para lavar a minha honra!

D. João que era um cavaleiro experiente nas lides da guerra ficou até um pouco receoso e porque estava certo de que o mapa devia mesmo conter um erro, resolveu continuar viagem sem mais contas pedir ao lavrador.

Deviam seguir agora, conforme indicações do mesmo mapa, até à “Eira do Palerma” e dali à “Azinheira da doidinha”. Muito andaram, ainda rodeando a serra, até que junto a uma ribeira viram um homem a joeirar o trigo.

            -Bons olhos o vejam…é aqui a “Eira do Palerma”?- Perguntou D. João muito à cautela!

            Como o homem não respondeu, D. João voltou a insistir, aproximando-se dele devagar.

            -É esta a “Eira do Palerma”?

            Foi neste momento que o homem levantou a face rude e esticou a forquilha em direcção a D. João.

            -Eu já lhe digo quem é que é o palerma… - Ameaçou.

D. Pedro vendo que o homem estava mesmo enfurecido, insistiu com o pai para que se afastasse e descesse até à ribeira. Ali estava uma mulher a lavar e uma jovem sentada à sombra de uma azinheira.

D. João aproximou-se com o mapa na mão.

            -Minhas senhoras que Deus esteja convosco…sou o novo senhor da serra. Queiram informar-me se faz favor se é esta a “Azinheira da doidinha”?

            A mulher que estava a lavar levantou os olhos muito zangada e chamou a filha para junto dela.

            A rapariga aproximou-se e D. Pedro vendo-a tão formosa não queria acreditar que ela era doidinha! Mas devia ser pois estava sentada debaixo da azinheira…

            A mulher mais velha abraçou a rapariga e as duas encolheram-se com um certo receio.

            D. João voltou a aproximar-se e nessa altura a mulher desatou aos gritos.

            De repente o homem da eira apareceu, correndo em direcção à ribeira, com a forquilha na mão.

            D. Pedro intercedeu pelo pai, metendo o cavalo à frente do homem.

            -Tenha calma! Só queremos saber se esta é a “Azinheira da doidinha”, como diz neste mapa!

O homem enfurecido apontou:

            - Não há aqui nenhuma “Eira do Palerma” mas sim uma “Ribeira da Pecena” e aquela não é a “Azinheira da doidinha” mas sim uma azinheira vulgar que fica junto à “Ribeira da Peceninha”. Esse vosso mapa é que está doido!

            -Oh! Meu bom homem peço perdão. - Disse D. João. - A minha comitiva vem atrás e eu e meu filho queremos romper caminho com a ajuda deste mapa. Diga-nos por favor para que lado fica o “Pio da Lebre” e o “Fio da Cigana”?

            -Desses lugares nada sei, meu Senhor, pergunte mais abaixo. Só conheço que para estes lados fica o Rio Degebe e mais à frente o Rio Guadiana!

            Os dois cavaleiros seguiram viagem e depois de muito andarem, encontraram um rio e dizia no mapa que naquela baixa, ficava a passagem do “Morto no casebre”.   De facto, à porta de uma azenha velha junto ao rio, estava estendido numa tarimba, um velho esquelético e barbudo. Logo D. João decidiu que tinha encontrado a passagem do “Morto no Casebre”. Aproximou-se sem qualquer cerimónia e chamou o filho.

            -Chegue aqui senhor D. Pedro, veja. Cá está o “Morto no Casebre”.- e apontou para o velho que jazia em cima da tarimba.

            -É parece que sim, finalmente um ponto que está certo no mapa! O “Morto no Casebre”…- Rematou D. Pedro.

            Ao ouvir estas palavras, o velho abriu os olhos e deu um salto com um pau na mão!

            -Chamo-me Rodolfo. Sou torto mas não estou morto e se vossas senhorias não dão de frosques, sacudo-lhe o cão e dou-lhe com o bordão!

            As montadas dos cavaleiros assustaram-se e por pouco não os deitaram ao chão.

            -E que lugar é este?  Gritou D. João, enquanto apertava o freio do cavalo.

            -Querendo passar o rio, para o lado de lá, é o “Porto do Degebe”.  Gritou o velho.

            Foi nessa altura que D. João percebeu que mais uma vez o mapa estava errado.

            E agora? Para que lado haveriam de seguir? Há mais de três dias que andavam emaranhados na serra, entre montes e vales, charnecas e montados, sem encontrar caminho nem carreira. Estava visto que andavam perdidos. Apearam-se e sentaram-se numa clareira. Aí consultaram o mapa.

            -Ora bem…este mapa não passa de uma armadilha. Indo para sul, indica que encontraremos a “Ribeira da Loura”, mas não é verdade pois eu sei que a sul fica um povoado que se chama “Amieira da Moura”. Para nascente fica o “Belo Velho que não bebe” e a “Ponte do Espantalhão”, lugares que desconfio não terem os nomes correctos. E para poente?

            -Para poente meu pai? Não poderemos seguir. Já viu Vossa Senhoria os elevados montes, cobertos de mato e habitados por animais selvagens, que teríamos pela frente. -  Reclamou D. Pedro Eanes.

            -Pois para poente é que a minha intuição me quer levar. Ora diz aqui: seguir para poente pelo “Madeiro do Fura-Mouro”, até encontrar o “Atoleiro da Vassoura Rude” e ver o “Ribeiro da manta pequenina”. Entre esses dois estará a “Tortela”…!

            -Isso é um enigma. Vamos perder dias a saber o que quer dizer. - Queixou-se D. Pedro que estava já desesperado de andar há tanto tempo pelo meio do matagal sem ver terra plana que lhe espraiasse a vista.

            -Coragem meu filho, somos bravos cavaleiros. - Incitou D. João de Aboim. - Diga-me palavras que rimem com “Madeiro”.

            -Pinheiro, outeiro, atoleiro, ribeiro…-Avançou D. Pedro, deitado sobre a erva, sem qualquer vontade para jogar aquele jogo.

            -Ora bem ou escolho outeiro ou escolho ribeiro. Fico-me pelo ribeiro. “Ribeiro do Fura-mouro”.

            -Meu pai “mouro” rima com “douro” que é um rio do norte que nós conhecemos. -Ajudou D. Pedro.

            -Sim, sim…Vamos então trocar “Madeiro do Fura-mouro” por “Ribeiro do Furadouro” - Concluiu D. João.

            -Muito bem meu pai, assim já faz mais sentido.

            -E agora “Atoleiro da vassoura rude”? - Continuou D. João.

            -Então se não é “Atoleiro”, ou é “ribeiro” ou é “outeiro”. - Afiançou D. Pedro.

            -Se há pouco era “ribeiro”, agora escolhemos “outeiro”. - Decidiu D. João. - Ora bem, “Ribeiro da Vassoura Rude”?!. Também ainda não faz sentido.

            D. Pedro deitado debaixo da azinheira, olhava o céu, por entre os ramos.

            -Pai que preocupação não terá já a Senhora minha mãe pelo nosso desaparecimento?

            -Vossa mãe é forte e está habituada às minhas ausências. O que importa é que ela e a Senhora sua irmã estejam bem de saúde.

            -Pai...! - Quase gritou D. Pedro. - “vassoura = senhora” e “rude = saúde”.

            -Bravo meu filho. No lugar de “Atoleiro da Vassoura Rude” vamos colocar “Outeiro da Senhora da Saúde”. -E D. João assim fez, rasurando o mapa.

            -E agora falta apenas?

            -Falta “Ribeiro da Manta Pequenina”. - Respondeu o pai.

            -Então apostamos novamente em “outeiro”. “manta” rima com “planta”, “espanta”, “canta”, “santa” e “pequenina” com “menina”, “sina”, “bailarina”...

            -Calma D. Pedro. Temos que continuar a jogar com as palavras. Então “Outeiro da Planta Menina”, não dá. “Outeiro da Espanta Sina”, também não dá. “Outeiro da Santa Bailarina”...

            -Meu pai, “Outeiro da Santa”, parece-me bem. Agora é só baptizar a Santa: “Irina”, “Umbelina”, “Catarina”...

            -Catarina, Catarina...recordo-me de um “Outeiro de Santa Catarina”. Vamos levante-se meu filho que já estamos perto. Subindo estes serros, encontraremos de certo estes dois grandes outeiros.

            Muito a contragosto de D. Pedro, os dois homens lá se lançaram serra acima, a pé, puxando as rédeas das montadas.

            Depois de um inóspito caminho por entre cumes e vales, pujados de vegetação cerrada, seguindo em parte o curso do “Ribeiro do Furadouro” e contornando o grande “Outeiro de Santa Catarina”, ficando este de norte e o da “Senhora da Saúde” para sul e precisamente entre estes dois montes, abre-se a serra e a vista espraia-se:

            -Veja meu filho. A saída da serra fica entre estes dois montes...

            -Então não é a ”Tortela” mas sim a “Portela”! - Respondeu ofegante D. Pedro.

            -Aqui sim fica a “Portela” e ali... - Apontou D. Pedro. - Ali, sobre aquele rochedo vou eu mandar construir castelo e fortaleza. Ali vou eu edificar “Portel-o-Novo”.

            -Bravo meu pai. Já me sinto “D. Pedro Eanes, Senhor de Portel”.

            -E eu: “D. João de Aboim, ilustre Senhor de Portel”...

            Os dois riram com cumplicidade.

            -Sabe meu filho... - Rematou D. João. - Vou mandar coutar todo o meu herdamento para que nunca mais existam dúvidas quanto à localização do novo termo de Portel.